terça-feira, 20 de julho de 2010


Isabel Marchezan

Direto de Londres


As gargalhadas e os motores acelerando passam despercebidos em meio ao barulho do trânsito de fim de tarde na Harrow Road, Centro-oeste de Londres. Enquanto os ingleses voltam para casa, como sempre apressados, um grupo de brasileiros relaxa depois de mais um dia de trabalho duro no trânsito londrino.

Regado a café e Coca-Cola, o happy hour na Frattelo´s é animado. Apesar do nome de pizzaria italiana, a Frattelo´s é a oficina de motocicletas de Alex Sandro Tassone Vieira. E QG de uma turma de motoboys paranaenses que dá duro pelo menos 10 horas por dia e depois se reúne para relatar as peripécias da atividade de entregador (courier, para os ingleses). A oficina, quase escondida sob um viaduto na valorizada região de Paddington, próximo ao Hyde Park, é também conhecida como Toca da Raposa.

O pátio do local serve como pista para demonstrações de destreza sobre duas rodas. Mas a oficina tem outros atrativos: lá eles fazem churrasco, dividem experiências, negociam suas motos e se queixam da polícia inglesa. Welisson Rodolpho Darlin, 22 anos, de Maringá, conta que ficou preso por cinco horas no ano passado depois de ser parado em uma blitz. O policial desconfiou que sua identidade italiana era falsa e, até o serviço de imigração confirmar a situação legal do motoqueiro, ele perdeu um dia de trabalho e ganhou um registro na polícia.

- Fiquei fichado por nada. A polícia aqui parte do princípio que brasileiro está sempre mentindo - reclama.

Rafael Pelizzer, 26 anos, concorda, pois o passaporte ita

liano também não o livrou de ficar 36 horas no xadrez dois anos atrás, até a polícia comprovar que o documento era genuíno. Há três meses, o jovem de Nova Londrina teve problemas de novo. Foi parado no trânsito pela polícia e levado preso sob o argumento de que o seguro da moto não é para trabalho. Rafael passou por testes para detectar drogas, prestou depoimento e foi liberado depois de 12 horas. Afirma ter a comprovação da seguradora de que a apólice é para profissionais e deve comparecer a uma audiência no mês que vem. Dependendo do veredicto, além de uma multa, está sujeito a perder a carteira de habilitação.

A desconfiança da polícia não é à toa, porém. Todos ali conhecem casos de gente que trabalhava ilegalmente ou tinha passaporte europeu falso. Glauber Anderson de Oliveira, 27 anos, foi deportado há dois anos por estar em situação ilegal - e por azar. Foi descoberto numa visita da polícia à sua casa, em busca de um amigo que havia "feito besteira" no trânsito. O amigo não estava, mas Glauber e o irmão, sem documentos, foram detidos na hora.

- Ficamos sete dias presos com a roupa do corpo, sem banho, sem escovar os dentes, antes de nos colocarem num avião.

Glauber passou um mês na terra natal, Nova Londrina (PR) e então rumou para o norte da Itália em busca do passaporte. Sete meses depois, estava de volta à garupa de uma moto em Londres. Hoje, trabalha das 8h30min às 18h30min como courier e, das 19h às 23h30min, entregando refeições para um restaurante. Apesar do diploma em Turismo e Hotelaria, não pensa em fazer outra coisa. Ganha cerca de 600 libras esterlinas (cerca de R$ 1,9 mil) por semana.

Para Rodolpho, negociar motos é uma forma de aumentar a renda, que fica entre 450 e 500 libras esterlinas (R$ 1,43 mil a R$ 1,59 mil) semanais. Ex-comerciante, perdeu a conta de quantas motos já teve nos quatro anos em Londres. A primeira foi uma Innova 125 adquirida com as economias de seis meses trabalhando como zelador e faxineiro de um prédio. Hoje, dirige uma Hornett 600 e deixa a Honda XR (125 cc) guardada na Toca da Raposa - enquanto não for vendida. Rodolpho pensa em voltar ao Brasil no final do ano que vem.

- Mas não faço mais planos, nunca dá certo.
Por que não?
- Porque você vem pra cá querendo comprar um Fusca. Quando consegue o Fusca, quer uma Parati, e assim vai. Eu já estou querendo uma Ferrari - ilustra.

- Eu, quando cheguei, queria comprar uma casa e uma Saveiro. Aí, importei a mulher, ela engravidou, aí acabou casa, acabou tudo - brinca Vinícius Toledo, 30 anos.

Tudo em cima
Pai de Lara, cinco anos, Vinícius logo abandona a conversa para atender a um chamado tardio do rádio, que não pode se dar ao luxo de passar adiante. Preso ao casaco sobre o peito, o kit de trabalho dos couriers é completado por um localizador por GPS e um palm top. O rádio é para chamar o motociclista, e pelo palm top vêm os detalhes de onde buscar e entregar as encomendas. O GPS é para os chefes saberem onde eles andam. Com tudo isso e mais um mapa, os motoboys chegam em qualquer lugar nos 1,7 mil quilômetros quadrados de Londres. Mas não foi com esses recursos que os brasileiros fizeram a fama de gente que trabalha duro que têm nas empresas de entrega, segundo seus próprios gerentes.

- A gente levava um gravador no casaco e, quando nos chamavam no rádio, gravava a mensagem. Tinha que ouvir 10 vezes até entender. Cansei de parar pessoas na rua para ouvirem a gravação. Aí eu dava um lápis e papel e pedia para escreverem para mim qual era a ordem - conta Alex.

- Tenho uma fita até hoje. Meu número era o "two-two".

Alex trabalhou por dois anos em cima de uma moto antes de abrir a oficina com o irmão, Edney, há seis. Ano que vem, ele volta para o Brasil. Vai se reunir a Edney em Curitiba, no negócio de autopeças - ele tem quatro lojas na capital paranaense.

Virar empresário também é o plano de Ailton Sena, o Seninha, 31 anos. Ele retornará a Nova Londrina no final do ano para tocar o lava-a-jato que comprou na última visita ao Brasil. Seninha trabalha há dois anos como motoboy em Londres. Antes, passou sete anos em Portugal trabalhando na construção civil. Na turma, tem fama de abastado.

- Quando o Seninha chega no banco lá em Nova Londrina, o gerente dá a própria cadeira para ele sentar! - brinca Rafael.

Contendo o sorriso tímido, Seninha diz que é tudo mentira, mas não esconde que vai embora satisfeito com as economias que fez em quase 10 anos na Europa.

- Consegui até mais do que eu queria quando cheguei.

Crise derrubou volume de trabalho
Até o ano passado, o happy hour na Toca da Raposa nem sempre era tão assíduo. Antes do estouro da crise de crédito, era normal trabalhar madrugada adentro, afirmam os motoboys.

- 1h, meia-noite era dia para nós. Agora, pelas 5 e meia da tarde já estão te dispensando - lembra Rodolpho.

Glauber Oliveira diz que chegou a ganhar mais de 700 libras (R$ 2,22 mil) por semana de trabalho.

Sonho da casa própria
Há dois "intrusos" na toca dos paranaenses. Os mecânicos Ernane e Júlio Tancredi, de 31 e 37 anos respectivamente, saíram de Anicuns, em Goiás, para tentar a vida de motoboy na capital inglesa. Mas, graças à deportação de um mecânico da Frattelos´s, acabaram ocupando a vaga na oficina.

Antes de vir para Londres, os irmãos ficaram cinco meses no interior da Itália até obterem a cidadania. Aqui, vão trabalhar até juntarem dinheiro para comprar uma casa e montar um negócio no retorno a Goiânia. Júlio, casado, aguarda ansioso a chegada dos três filhos assim que ganharem seus passaportes. Ernane, divorciado, mata a saudade de seus dois pequenos por telefone e MSN.